Sarapatel dos Estetas |
http://sarapatel.cjb.net
|
|
Roberto
Della Santa Barros
Santos
- S. P.
|
Crônicas |
uma tonalidade que será um parâmetro referencial em seu julgamento visual. Impossível que as mais acuradas papilas gustativas reunam num único sabor o mais comezinho chá de ervas. Assim como as várias freqüências sonoras serão percebidas de maneira díspar por pessoas diferentes. Ademais, há ainda o fato de que o conjunto complexo e impenetrável de sensações e experiências perfaz por si só um novo - e em constante mutação - instrumental receptivo. Destas breves considerações depreende-se que: não existe relato, arte ou trabalho que não seja autoral. Não existe isenção alguma em toda e qualquer obra que envolva mulheres e homens. Não existe precisão. Precisão é
um conceito que estende em pretenso nível ótimo as tendências
de assepsia técnica e argüição metodológica
historicamente talhadas pela
Afastarei-me com prazer
de qualquer polêmica quanto a isso - apesar de considerar imensamente
atrativo qualquer argumento que incite a discussão entre cavalheiros.
O intento que desejo registrar é
Bem, a postos. Primeiramente
seria interessante descrever, ou desvelar, alguns processos cognitivos
de que se vale o autor - por exemplo - para redigir este ensaio. Não.
A tarefa não é tão sofisticada. O que quero é
sugerir-lhes que, o menos literariamente possível, o mesmo
que caga escreve. E poderia inclusive escrever enquanto defeca. Na possibilidade
Destrinchando a relação analógica, podemos atentar para cada processo em particular - no caso dos autores-cagantes que conseguiram preservar a autonomia e independência de cada um deles (escrever e cagar) - traçando-lhes um paralelo, tentando uma aproximação. O colega quando caga geralmente
senta-se. É preciso inspiração. Muitos recorrem aos
jornais - os mais dedicados o fazem ouvindo música clássica
e em companhia de bons livros. Um momento para a mais transcendental reflexão
e iniciam-se as atividades esfincterianas. Aí se conferem os primeiros
torneios de estilo. Esculpindo o troço com o esmero necessário
Irremediável quando
se dá o bloqueio - o conhecido branco. O branco dos vasos sanitários
possui denominação mais severa: prisão-de-ventre.
Comum acontecer por estranhamento a locais inóspitos ou nunca dantes
cagados - há de haver uma certa intimidade para com a "tabula rasa"
(no caso, funda) que assegure a pacificidade do espírito. Porém
não há
Quando em incontinente profusão
criativa esvai-se muito de nossos obreiros. É como se não
houvesse pudor algum em doar-se constante e ininterruptamente. Chegam a
passar horas a fio agarrados aos respectivos
Quanto à forma poderia-se discorrer quase que indefinidamente: períodos longos ou curtos, eloquência condoreira ou mansidão bossa-novística, linearidade discursiva ou desconstrutivismo, etc., etc., etc. Tanto na redação quanto, muito aplicavelmente, na caganeira. Não pretendo defender com isso que os que cagam pouco escrevem poucas linhas ou mesmo que os grandes cagões são célebres intelectuais. Também não sustenta-se a afirmação de que quanto mais se estuda a merda maior domínio adquire-se sobre a sua criação-produção. É bem sabido que é possível viver sem escrever sequer um dia, ou ao menos uma frase durante toda uma existência. Contudo, nunca conheceu-se um único bípede que desde o berço até o túmulo não tenha dado pelo menos uma única e singela cagadinha - a não ser aqueles que por infortúnio vieram a falecer antes de se depararem com a mornitude das primeiras fezes, ah! os coitados petizes. Assim parece óbvio que todo escritor caga, mas nem todo cagante escreve. Afinal, de acordo com nossos valores mais aristocráticos e altaneiros, o que é mais importante: cagar ou escrever? Sem desmerecer o cabimento da questão já levantada, lanço outra talvez mais urgente: pode-se separar o ser ontológico cagante do eu-lírico sem cú? Há semântica, ortografia ou mesmo discurso de merda que resista à descarga? É ponderável o surgimento de um movimento sanitarista das letras? Se sim, sua bandeira não levaria em sua constituição ares quasi-nazistas, digamos, um quê anti-bosta? Existe merda não persuasiva? A métrica apolínea serviria ao ofício de bosta? Haveríamos de estabelecer uma gramática normativa ou isto prejudicaria o livre-cagar? Como divulgar a beleza da merda às massas iletradas? São tantas as perguntas, e tão instigantes, que chegam a aturdir. Na tentativa de sintetizá-las numa só indagação: como fazer com que o circuito literário e o merdário venham a convergir em harmonia? Impensável refrear
o ímpeto desenvolvimentista. Logo criar-se-á um sem-número
de escolas superiores de belas merdas. O curso de Merdas será ministrado,
em sua aula inaugural, pelos mais proeminentes catedráticos da Academia
Nacional de Merdas. As tradicionais carteiras darão lugar a luxuosas
privadas. A mesa de conferências terá sempre à
Reunir-se-ão sociólogos, antropólogos e psicólogos de merda para chamar a nossa atenção à merda popular, feita no mato e à luz de velas. Delinearão a historicidade da merda. Biólogos, etólogos e fisiologistas de merda acompanharão seus traços evolutivos, relatando a importância do ânus, que afinal, surge antes mesmo do que a boca e as mãos na anatomia humana. Hão de revelar-nos a verdade: se os primatas que nos antecederam desceram das árvores por algum motivo foi para obter maior conforto na incumbência cagatória. Não faltarão filósofos de merda a enaltecer as propriedades adubativas das fezes e a destacar o momento de transição das fraldas à fossa - serão filósofos e coprólogos - exultarão a caca, o cocô, o kopros. Na esteira da era cóprica, encontraremos: engenheiros, secretários, artistas, burocratas, médicos, assessores, radialistas, relações públicas, juristas, matemáticos, botânicos, arquitetos, advogados, atletas, biblioteconomistas, operários, cozinheiros, historiadores, diretores, zeladores, informatas, designers, atores, físicos, publicitários, treinadores, políticos, sacerdotes, geógrafos, palhaços, jardineiros, tutores, químicos, ascensoristas, programadores, cineastas, modelos, professores, cantores, arqueólogos, presidentes, astronautas, e até, jornalistas de merda - dando cobertura necessária à política de merda sem olvidar da merda social. E vive la merde! |