CONTOS


A sensibilidade do Caos

Felipe Lira
João Pessoa/PB
Brasil
drnn@openline.com.br


Certa vez ouvi um mendigo dizer que a vida é uma eterna superação de realidades. Foi assim: quando eu esperava um ônibus numa dessas ruas quaisquer, havia no outro calçada da rua um velho sentado de cabeça baixa num banco de praça . Eu sempre pegava o ônibus no mesmo ponto todos os dias e nunca me tinha deparado com aquela figura. Quando o olhei novamente, porém, ele se tinha levantado do banco e olhava para mim firmemente. No início, fiquei com um certo medo, mas logo me contivera, passados alguns segundos, o mendigo começou a caminhar para meu lado em passos vagarosos e em nenhum momento deixava de me fitar com seu olhar de velho mendigo.

Pela forma do mendigo se comportar, imaginei que se tratasse de um louco – afinal, a miséria tem dessas coisas, assim como o seu contrário: a fortuna. Para enlouquecer um homem, basta tirá-lo todo o poder que tem ou cedê-lo todo aquele que não tem –, fingi que ele não me olhava e tentei me distrair olhando para outros lugares querendo não o demonstrar medo ou coisa semelhante. Mas não adiantava, o velho continuava caminhando para mim sem desviar o olhar.

Não suportando mais aquela ansiedade, me aproximei dele e quis saber porque me olhava tão firmemente e o que queria comigo.

- Você acredita em Deus? – perguntou-me ele após um pequeno silêncio.

- Acredito. – respondi com firmeza.

- Mas saiba que não, você não acredita. A única coisa na qual você acredita é numa idéia que te deram e até hoje você não sabe sequer por que razão. Acredita em um nome, em um conceito, em uma arquétipo, mas não em Deus.

- E você, no que acredita? – perguntei a ele.

- Venha aqui.

Ele me convidou para algum lugar que ficava dentro de um zoológico próximo à praça onde eu o havia visto. Eu já tinha adquirido certa confiança nele, e movido pela curiosidade, resolvi ir até lá.

- Você tem jardim em sua casa? – perguntou-me ele.

- Tenho, porquê?

- Ora! Não seja tolo, essa é apenas uma conversa, não cometa o erro de dar sentido à tudo de vê ou escuta, há no mundo coisas sem sentido, e, acredite, aceitar isso é um grande desafio.

- Mas o homem é um ser racional e sempre busca o sentido de tudo que vê ou escuta.

- Você já perguntou aos outros seres vivos se eles procuram ou não esse sentido?

- Não - disse eu assustado com a inteligência do velho.

- A razão é apenas um dos tantos caminhos que si usam nesse sentido.

- Certo, mas onde vamos?

- Eu não vou a lugar nenhum, você vai a algum?

- Acho que você está querendo me enlouquecer, você disse que me ia dizer no que acredita.

- Eu pedi que viesse comigo, não prometi que o diria isso. Mas não quero decepcioná-lo, vamos andando por aqui.

Entramos num caminho estreito rodeado de flores e árvores, ouvia um barulho forte de cachoeira, devia haver alguma delas mais a frente. À medida que ia andando por ali, as flores iam ficando maiores e mais coloridas, os pássaros iam cantando mais alto e com maior freqüência, tudo ia adquirindo uma suave beleza que se descortinava sobre minha consciência tomando um aspecto mais vivo e denso, minha mente parecia se abrir para o mundo alegre tal como fazem as rosas em dias ensolarados de primavera.

O mendigo parecia conhecer muito bem aquele lugar, parecia já ter estado ali várias outras vezes. Num certo estante ele parou e me pediu para ouvir os sons dos pássaros e tentá-los imitar com minha voz.

- Conseguiu?

- Não. – disse eu.

- E nem ia conseguir, as coisas da vida são únicas, e nenhum canto de pássaro, nenhum barulho de cachoeira, são semelhantes entre si. Mas há quem acredite poder imitar ou criar a natureza tal qual ela é, são os homens, são os homens...

- Você mora aqui? – Perguntei eu.

- Pode-se dizer que sim, na verdade moro onde quero morar.

- Mas como... como estava sentado naquele banco de praça parecendo um mendigo?

- Mas eu sou um mendigo, eu já lhe pedir para não dar significado às palavras, elas são mutáveis e você não as pode conter. Morar onde quero não significa dizer que sou rico tal qual você entende por isso. É apenas um adjetivo que me deram, e ele nunca significou nada para mim.

- Você é muito complexo - disse eu com ar de quem não entendeu nada.

- É, as coisas mais simples do mundo são as mais complexas. Um dia você saberá o que estou dizendo. Um dia, não antes.

De repente, vi um homem esquelético na minha frente que não tinha força sequer para falar e que me pedia esmolas com a cabeça baixa e os olhos voltados para o chão: era ele. Tudo aquilo não tinha passado de uma criação. Tudo aquilo tinha se transcorrido num piscar de olhos. Em poucos instantes, todos os pássaros, as águas, as flores, todo aquele mundo tinha se transformado na realidade dos homens apresados, dos carros buzinando, dos prédios luxuosos, e do mendigo pedindo dinheiro para tomar cachaça e entrar um pouco naquela delírio necessário.

Mas, por incrível que pareça, aconteceu algo que me surpreendeu. Quando dei o dinheiro que o mendigo me pedia, sua última frase foi: " A vida é uma eterna superação de realidades" . A parti dali comecei a viver e descobri que Deus não se pode pensar e não se pode expressar, Deus é sentir.