CONTOS


Um suspiro de liberdade

Felipe Lira
João Pessoa/PB
Brasil
drnn@openline.com.br


Nunca se haveria de notar algum sentimento de alegria ou tristeza no autômato, possuía família, filhos e esses outros detalhes que compõe o conceito de normalidade. E embora alguns jurassem que ele possuísse a si próprio como regulador dos atos e sentimentos, tratava-se do mais lascivo ser, de uma lascividade que chegava a beirar o infinito espaço que existe entre dois átomos. Trabalhou toda a vida na mesma empresa e no mesmo ofício, apesar disso, orgulhava-se do que se tornara: um homem de cinqüenta anos cujo único trabalho era apertar parafusos, desempenhava tão bem essa função que, certa vez, um gringo que estava de passagem pelo Brasil, sabendo da destreza daquele homem, chamou-o para trabalhar em seu país, mas logo se deu a recusa por parte do assas cidadão, ele acreditava que, se fosse trabalhar em outra nação, certamente não estaria contribuindo em nada para o crescimento da sua própria, tal era o espírito cívico que o incutia.

O ofício que agora executava, em verdade, fora herdado de seu pai, um homem que, por meio daquele trabalho, conseguiu em tempos passados sustentar toda uma família de cinco filhos e alguns agregados a que todos os lares são passíveis de ter, de todos os filhos que tivera, o único que herdara a arte de emparafusar fora o filho mais novo, Francisco, este de que falamos a pouco, aprendeu vendo o pai trabalhar na velha oficina da casa e já aos cinco anos apertava parafusos como um artista que ao ver uma tela em branco, logo lhe desperta a vontade de pintar, e pinta como quem rege uma orquestra com um único ouvinte: Deus. A arte de emparafusar assumia um caráter renovador e a cada parafuso que apertava todo ele era espírito e algo mais, era uma catarse de emoções dúbias, similares, rivais, irregulares, desconexas que inundavam-lhe a mente e sublimava-o, o parafuso era um mar onde rios se encontravam para executar ondas coloridas. Parafusar para Francisco era assim, não é à toa que a empresa em que trabalhava lhe rendia muitos prestígios, embora estes nunca se tivessem demonstrado pelo salário que recebia, 30 reais por semana, era uma quantia que parecia evidenciar o quanto aquela profissão era banal, afinal, qualquer máquina o faria, talvez até com mais agilidade e rapidez, mas jamais com tamanho amor e sentimento, mas isso é apenas um detalhe.

No tempo do seu pai, apertar parafusos era algo que rendia uma quantia digna, porém, com a modernidade, a existência desse ofício foi se tornando prescindível, e os que dele sobrevivia acabaram seguindo outro itinerário mais rentável . A admiração pelo trabalho de Francisco por parte de todos os outros empregados era tamanha que ninguém nunca pensou em demiti-lo, talvez por saberem da paixão que ele tinha por tal profissão ou, o que é mais crível, por uma questão de piedade; todos sentimos piedade um dia por alguém, e todos nós um dia também fomos ou seremos dignos dela.

Contudo, apesar de o tempo tê-lo cingido a existência e embora sua profissão tivesse um quê de dispensável, Francisco era feliz; nunca teve filhos nem mulher, apenas algumas meninas do tempo da juventude a que namorara sem maiores intenções que não fosse o encontro a dois, quanto aos irmãos, todos morreram ou estão presos por crimes quaisquer, a solidão era, pois, sua única companhia. Francisco vivia numa casa num bairro pobre da cidade, o teto era de lona e a porta, bem, a porta não havia, era um homem satisfeito, não era acomodado, como sê-lo em tal situação? mas era um ser satisfeito consigo e talvez por isso mesmo nunca desistisse de ser mais do que aquilo que se tornara, acreditava que havia algo mais a si conquistar sempre, aquela satisfação apenas não deixava criar a ansiedade comum aos que não aceitam ser o que são, entretanto, era satisfeito até o limiar dos sonhos, nesse ponto surgia a vontade, inerente a cada um de nós, de ser Deus, seja lá de que forma fosse.

Quanto em cento dia chegou ao trabalho, notou algumas modificações, estava tudo muito bem organizado e limpo, admirado com a situação, foi ao chefe e interrogou-lhe:

- Que aconteceu aqui?

- Nós vamos vender a empresa Francisco – respondeu o chefe.

- Mas, por quê?

- Não dá mais, o negócios estão indo de mal a pior.

- Alguém se interessou? – Francisco perguntou ansioso.

- Sim, há um grupo que quer comprar nossa empresa para transformá-la em galpão.

- Mas...e os empregados?

- Sinto muito...- foi a última frase do chefe

A empresa estava passando por uma grave crise financeira e a única solução seria vendê-la, os empregados, evidentemente, teriam que ir embora, principalmente Francisco, um simples apertador de parafusos, deve-se ter imaginado a situação a que ele se viu emerso, e agora? O que faria depois de tantos anos se dedicando a uma mesma empresa e com um trabalho já fracassado?

Ao sair da sala, Francisco se aproximou de uma janela, olhou para cima e soltou uma frase gritando para todo universo:

- Estou liiiiiiiiiiiiiivreeeeeee! Toda a realidade se congelou por segundos enquanto a voz penetrava no vazio de cada lugar, após o retorno do movimento, pássaros saíram dos ninhos cantando e as gaivotas voaram mais alto.